DO PODER DISCIPLINAR AO BIOPODER
Ao longo dos séculos XVII e
XVIII, portanto, no que tange às relações de poder, muitas transformações
passam a ser operadas. A mais importante delas consiste certamente na
constatação foucaultiana de que o poder da soberania é substituído gradativamente
pelo poder disciplinar e, por conseguinte, as monarquias soberanas se convertem
aos poucos em verdadeiras sociedades
disciplinares. Mas a que se deve esta transformação histórica? É nesse
ponto que a pesquisa de Foucault revela que, ao longo desses dois séculos,
multiplicaram-se por todo o corpo social verdadeiras instituições de disciplina, tais como as
oficinas, as fábricas, as escolas e as prisões – que passam a constituir seu
objeto de investigação em Vigiar
e punir.
Ao contrário do que ocorre no
âmbito do poder da soberania, o poder disciplinar não se materializa na pessoa
do rei, mas nos corpos dos sujeitos individualizados por suas técnicas
disciplinares. Enquanto que o poder da soberania, ou poder soberano, se
apropria e expia os bens e riquezas dos súditos, o poder disciplinar não se
detém como uma coisa, não se transfere como uma propriedade: "o poder
disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e retirar, tem
como função maior adestrar;
ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor"
(Foucault 2001b: 143). Isso porque a modalidade disciplinar do poder faz
aumentar a utilidade dos indivíduos, faz crescer suas habilidades e aptidões e,
conseqüentemente, seus rendimentos e lucros. O poder disciplinar, através de
suas tecnologias de poder específicas, torna mais fortes todas as forças
sociais, uma vez que leva ao aumento da produção, ao desenvolvimento da
economia, à distribuição do ensino e à elevação da moral pública, por exemplo
(Foucault 2001b: 172).
Na medida em que a base da
sociedade passa a se ver de ponta a ponta atravessada por mecanismos de
disciplina, invertem-se também os princípios da centralidade e da visibilidade do poder. Vejamos como. Enquanto que,
no caso do poder da soberania, o poder encarnava-se na figura do soberano e
esse se encontrava, justamente por isso, no centro das relações de poder, já na
hipótese do poder disciplinar, não há um centro único de poder e nem mesmo uma
figura única que o encarna: o poder encontra-se nas periferias, distribuído e
multiplicado em toda parte ao mesmo tempo, materializado que está nos corpos
dos indivíduos a ele sujeitados. Além disso, observe-se que, no caso do poder
disciplinar, o poder se exerce por meio de uma extensa e ameaçadora
visibilidade da pessoa do soberano, a quem todos devem conhecer e reconhecer
posto que é a sua autoridade que centraliza os efeitos do poder. Ao contrário,
no caso do poder disciplinar, essa relação se inverte. Conforme veremos mais detidamente
logo a seguir, o poder disciplinar deve manter-se na invisibilidade para
funcionar, pois que a sua invisibilidade ressalta a visibilidade daqueles que a
ele se sujeitam, de modo que a sua eficácia é constante e permanente. Mas vamos
com calma até chegar lá.
Além da multiplicação das
instituições de disciplina, Foucault observou que os séculos XVII e XVIII
também assistiram a uma efusão de dispositivos
disciplinares ao longo de
toda a extensão da estrutura da sociedade. Mas em que consistem esses dispositivos
disciplinares? Em que consiste, afinal, a disciplina? A disciplina é uma
tecnologia específica do poder, ela é "um tipo de poder, uma modalidade
para exercê-lo, que comporta todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de
procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos; ela é uma física ou uma
anatomia do poder, uma tecnologia" (Foucault 2001b: 177). Na medida em que
o poder disciplinar é uma modalidade de poder múltipla, relacional, automática
e anônima, a disciplina, por sua vez, também faz crescer e multiplicar aquilo e
aqueles que estão a ela submetidos. Nesse sentido, pode-se dizer que a
disciplina é uma técnica que fabrica indivíduos úteis. A disciplina faz crescer
e aumentar tudo, sobretudo a produtividade. E aqui se fala em produção não
apenas em um sentido econômico. Além de ampliar a produtividade dos operários
nas fábricas e oficinas, a disciplina faz aumentar a produção de saber e de
aptidões nas escolas, de saúde nos hospitais e de força no exército, por
exemplo. São por esses motivos, principalmente, que Foucault fala em um triplo
objetivo da disciplina: ela visa tornar o exercício do poder menos custoso –
seja econômica ou politicamente –, busca estender e intensificar os efeitos do
poder o máximo possível e, ao mesmo tempo, tenciona ampliar a docilidade e a
utilidade de todos os indivíduos submetidos ao sistema (Foucault 2001b:
179-180).
Quanto aos dispositivos
disciplinares, ou instrumentos do poder disciplinar, também são em número de
três os seus principais, quais sejam: o olhar hierárquico, a sanção
normalizadora e o exame. Vejamos brevemente cada um deles. O olhar hierárquico consiste antes na idéia mais ampla de vigilância. A vigilância é a
mais importante máquina, a principal engrenagem do poder disciplinar: ela
contribui para automatizar e desindividualizar o poder, ao passo que contribui
para individualizar os sujeitos a ele submetidos. Ao mesmo tempo, a vigilância
produz efeitos homogêneos de poder, generaliza a disciplina, expandindo-a para
além das instituições fechadas. Nesse sentido, pode-se dizer que ela assegura,
como explica Foucault, uma distribuição infinitesimal do poder.
Quais são, portanto, essas
novas mecânicas de poder que a vigilância traz consigo? A mais importante delas
é, sem dúvida, aquilo que Foucault considera ser uma espécie de 'ovo de
colombo' da política: o panóptico de Bentham. Essa espécie de utopia política
da arquitetura tem o condão de
fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo
se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a
atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma máquina de
criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce;
enfim, que os detentos se encontrem presos numa situação de poder de que eles
mesmos são portadores (Foucault 2001b: 166).
Ao ser adotada a arquitetura
circular nas prisões e escolas, nos hospitais e fábricas, enfim, em toda sorte
de instituições que tenham a marca da disciplina, o poder converteu-se em algo
invisível e inverificável. Para que o dispositivo disciplinar exerça-se
plenamente em todos os seus efeitos basta que aqueles que estão a ele
submetidos saibam que são vigiados ou, mais (ou menos) do que isso, que são potencialmente vigiados. A potencialidade da vigilância,
sua possibilidade apenas, é por si suficiente para que o poder disciplinar se
exerça justamente porque com ela uma sujeição real nasce de uma relação
fictícia. Esse caráter ficcional, por assim dizer, decorre do fato de que, ao
saberem-se sujeitos a um único olhar a tudo pode ver permanentemente, os
indivíduos disciplinam-se a si mesmos, e o fazem constantemente em simetria à
permanência desse olhar onipresente. Na medida em que a visibilidade constante
dos indivíduos e a invisibilidade permanente do poder disciplinar fazem com que
os indivíduos se adestrem, se ajustem e se corrijam inicialmente por moto
próprio, pode-se afirmar que a vigilância substitui a violência e a força. Sem
essas, passa a ser ainda possível se falar em um adestramento ou readestramento
espiritual, das almas, e não dos corpos.
Com a vigilância, o poder
disciplinar torna-se um sistema integrado, converte-se no conceito de diagrama.9 Não há um centro, não há um chefe no
topo da forma piramidal desse poder: a engrenagem como um todo produz poder.
Trata-se de um poder em essência relacional.
Daí Foucault afirmar que o poder disciplinar funciona como uma máquina, se
organiza como uma pirâmide e opera como uma rede. Com sua forma hierarquizada,
contínua e funcional, a vigilância também estabelece uma simetria crescente
entre poder e produção, poder e saber. Mais uma vez, a fórmula foucaultiana se
repete: quanto mais poder se exercer sobre os indivíduos, maior será a sua
produtividade; quanto mais o poder discipliná-los, mais saber eles gerarão.
O segundo dos principais
dispositivos disciplinares é a sanção
normalizadora. No núcleo de cada sistema disciplinar funciona um pequeno
mecanismo penal. A disciplina traz consigo uma maneira específica de punir. O
castigo disciplinar tem a função de reduzir os desvios, ele é corretivo. Com a
sanção, os indivíduos são diferenciados em função de sua natureza, de suas
virtualidades, de seu nível ou valor... eles são, enfim, avaliados, e por isso
são, por mais uma vez e por mais um motivo, individualizados. A punição
característica do poder disciplinar, contudo, não visa nem a expiação, nem a
repressão: "a penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla
todos os instantes das instituições disciplinares compara, diferencia,
hierarquiza, homogeneíza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza" (Foucault
2001b: 153). Com o poder disciplinar surge, portanto, o poder da norma, que substitui – de forma
muito diferenciada, é claro – o papel que a lei desempenhava no regime do poder
da soberania. Saiu de cena a codificação dos comportamentos para entrar em cena
a normalização das condutas.10
Finalmente, o exame é o último dos dispositivos do poder
disciplinar que nos resta comentar. Antes de mais nada, cabe ressaltar que ele
consiste em uma espécie de articulação entre a vigilância e a sanção
normalizadora. Em outras palavras, o exame constitui o indivíduo como objeto
para análise e posterior comparação. Trata-se de um controle normalizante, uma
vigilância que permite qualificar, classificar e punir. O exame estabelece
sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e
sancionados. Disso decorre que o exame é o resultado do somatório entre
objetivação e sujeição: "ele manifesta a sujeição dos que são percebidos
como objetos e a objetivação dos que se sujeitam" (Foucault 2001b: 154).
Objetivação essa, ressalte-se, que opera pela concomitância entre a
visibilidade dos sujeitos e a invisibilidade da disciplina. Ritualizado ao
extremo, o exame tem ainda, e mais uma vez no sistema foucaultiano, o atributo
de colocar em funcionamento relações de poder que permitem obter saber. Mais do
que isso, com o exame, o indivíduo passa a ser, ao mesmo tempo, efeito e objeto
do poder e do saber: "o exame não se
contenta em sancionar um aprendizado; é um de seus fatores permanentes"
(Foucault 2001b: 155).
A vigilância do pan-óptico, a
disciplina e o exame: todos os dispositivos disciplinares funcionam, portanto,
como um laboratório de poder, proporcionando um aumento de saber em todas as
suas frentes. Durante a segunda metade do século XVIII, no entanto, essas
tecnologias disciplinares do poder passam a ser acrescidas, integradas por
outras e novas técnicas de poder que não possuem em sua essência, contudo, a
idéia de disciplina. Antes de passarmos a analisar essa nova tecnologia de
poder que é o biopoder, o Quadro
1, abaixo, nos apresenta uma espécie de contraposição entre as modalidades
soberana e disciplinar do poder, comentadas acima.
O poder disciplinar, portanto,
passa, a partir da segunda metade do século XVIII, a ser complementado pelo
biopoder. Complementado porque não se opera efetivamente uma substituição, mas
apenas uma pequena modificação – ou adaptação –, e jamais uma exclusão. Em
outras palavras, o biopoder implanta-se de certo modo no poder disciplinar,
ele embute e integra em si a disciplina, transformando-a ao seu modo. O
biopoder "não suprime a técnica disciplinar simplesmente porque é de outro
nível, está noutra escala, tem outra superfície de suporte e é auxiliada por
instrumentos totalmente diferentes" (Foucault 1999: 289). Ambas as
espécies de poder passam assim, portanto, a coexistir no mesmo tempo e no mesmo
espaço.
São muitas as variações,
entretanto, encontradas entre as duas mecânicas de poder em questão. Ao passo
que o poder disciplinar se faz sentir nos corpos dos indivíduos, o biopoder
aplica-se em suas vidas. Enquanto a disciplina promove a individualização dos
homens, o biopoder acarreta uma massificação, tendo em vista que ele se dirige
não aos indivíduos isolados, mas à população. Daí que os efeitos do biopoder se
fazem sentir sempre em processos de conjunto, coletivos, globais... processos
esses que fazem parte da vida, da vida de uma população: os nascimentos, as
doenças e as mortes constituem exemplos desses processos. E o biopoder trata
exatamente do conjunto desses processos de natalidade, longevidade e
mortalidade, seja comparando a proporção dos nascimentos e dos óbitos, seja
verificando a taxa de fecundidade de uma população. Enfim, são vários os
exemplos cedidos por Foucault para explicar essa modalidade de poder.
O que é importante perceber é
que em todos esses processos nos quais se exerce o biopoder há
concomitantemente uma extensa produção de saber. Entram em campo as ciências
exatas e biológicas: a Estatística e a Biologia, principalmente, passam a ser
extremamente importantes nesse momento em que se necessitam de demografias,
políticas de natalidade, soluções para endemias, entre outras coisas mais. A
questão da higiene pública passa a ser a principal pauta da Medicina e, com
ela, podemos pensar que o biopoder assume uma certa forma de poder de polícia,
tal como entendemos essa última modalidade de poder contemporaneamente. O
biopoder traz ainda consigo novos mecanismos e novas instituições, tais como a
poupança e a seguridade social (Foucault 1999: 290-291).
É, portanto, a cidade e a população que entram em cena no regime do
biopoder. E isso é relevante, segundo Foucault, porque nem o poder da soberania,
nem o poder disciplinar operavam com essas noções. A cidade e a população
passam a ser problemas políticos, problemas da esfera do poder. E esses
problemas ou fenômenos também apresentam outras características em si
peculiares. Eles são, por exemplo, essencialmente problemas coletivos, de
massa, cuja ocorrência se dá sempre em série e nunca de forma isolada ou
individualizada. O biopoder não intervém no indivíduo, no seu corpo, como faz o
poder disciplinar; ao contrário, intervém exatamente naqueles fenômenos
coletivos que podem atingir a população e afetá-la – disso decorre que precisa
estar constantemente medindo, prevendo, calculando tais fenômenos e, para isso,
o biopoder cria algunsmecanismos reguladores que o permitam realizar tais
tarefas como, por exemplo, aumentar a natalidade e a longevidade, reduzir a
mortalidade e assim por diante.
Os mecanismos de previdência –
ou prevenção –, criados com o biopoder, sinalizam uma preocupação com a
otimização da vida e não, perceba-se, uma maximização de forças que a
disciplina do poder disciplinar tenta por si assegurar. Com efeito, a
disciplina, no âmbito do biopoder, é convertida em regulamentação. Regulamenta-se
para assegurar e garantir a vida, para prevenir e evitar a morte. Essa
regulamentação, ressalte-se, não é exclusiva do Estado. Foucault menciona uma
série de focos do biopoder que se localizam no âmbito infra e paraestatal. É o
caso, por exemplo, de algumas instituições médicas, das caixas de auxílio e dos
seguros (Foucault 1999: 293-299).
Poder disciplinar e biopoder,
afinal, sobrepõem-se e superpõem-se constante e incessantemente. O melhor
exemplo que Foucault fornece dessa espécie de acoplagem entre as duas
modalidades de poder é dado pelo tema da sexualidade. De acordo com Foucault, a
sexualidade se tornou um campo de importância estratégica no século XIX
justamente porque dependia, simultaneamente, de processos disciplinares e
biológicos, individualizantes e massificantes, controladores e regulamentadores...
enfim, a sexualidade se situa exatamente entre os corpos dos indivíduos
singulares e a unidade múltipla da população. No campo do saber produzido em
conjunto pela fusão entre as mecânicas disciplinares e biopolíticas do poder,
Foucault nos dá o exemplo da Medicina como um tipo de poder-saber que incide
concomitantemente sobre os corpos individuais e sobre a população. A Medicina,
portanto, assim como a sexualidade, possui tanto efeitos disciplinares como
efeitos regulamentadores (Foucault 1999: 300-302).
Há portanto um elemento em
comum que transita entre o poder disciplinar e o biopoder, entre a disciplina e
a regulamentação, e que possibilita a manutenção do equilíbrio entre a ordem
disciplinar do corpo e a ordem aleatória da população. Esse elemento é a norma, "que pode tanto se
aplicar a um corpo que se quer disciplinar quanto a uma população que se quer
regulamentar" (Foucault 1999: 302). A norma da disciplina e a norma da
regulamentação dão origem ao que Foucault chama de sociedade de normalização, uma
sociedade regida por essa norma ambivalente, na qual coexistem indivíduo e
população, corpo e vida, individualização e massificação, disciplina e
regulamentação.
Dizer que o poder, no século XIX, tomou posse da vida, dizer pelo
menos que o poder, no século XIX, incumbiu-se da vida, é dizer que ele
conseguiu cobrir toda a superfície que se estende do orgânico ao biológico, do
corpo à população, mediante o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma
parte, e das tecnologias de regulamentação, de outra (Foucault 1999: 302).
O Quadro
2, abaixo, apresenta uma justaposição entre os elementos e as
características do poder disciplinar e do biopoder.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É preciso ter cuidado para não
confundir os conceitos que Foucault teceu para compreender historicamente o
poder tal como ele se manifestou ao longo dos séculos (estamos falando,
evidentemente, do poder disciplinar e do biopoder) e o significado do conceito
de poder, este apenas em forma abstrata, que criou para lograr opor-se às
teorias tradicionais do poder e, assim, promover a limpeza de terreno
necessária para colocar em prática a sua analítica – ou genealogia – do poder.
O poder disciplinar e o biopoder, portanto, assim como o poder da soberania,
operam como categorias historicamente constituídas, ou melhor, são chaves de
análise e interpretação do poder tal como ele se manifestou através de seus
efeitos na história da sociedade ocidental. Enquanto categorias analíticas,
descritivas, contudo, o poder disciplinar e o biopoder servem como instrumentos
para que Foucault crie ainda uma nova categoria; na verdade, um novo conteúdo,
um novo significado para o conceito de poder.
Pode-se pensar, por
conseguinte, que, com Foucault, o conceito de poder passa a ganhar um sentido
emancipatório, libertador, ao liberar-se do estigma, do falso estigma, da
repressão. Ao emancipar-se desse falso atributo e passar a conter em si mesmo o
ideal de emancipação, o poder, agora visto como algo positivo, irrompe também
como pura e plena produtividade. O poder produz:
ele constrói; destrói e reconstrói; ele transforma, acrescenta, diminui,
modifica a cada momento e em cada lugar a si mesmo e a cada coisa com a qual se
relacione em uma rede múltipla, móvel, dinâmica, infinita... o poder é produção
em ato, é a imanência da produtividade. Acima de tudo, como vimos, o poder está
em estreita relação com o saber. Poder e saber se produzem e auto-reproduzem,
estabelecem uma relação de mútua dependência – e de mútua independência –
produzindo, dessa fusão interprodutiva, um novo conceito: o poder-saber.
Quando compreendemos o conceito
foucaultiano de poder dessa forma, ou melhor, quando conseguimos o enxergar
além da analítica e do olhar historiográfico de seu autor, ele parece ser algo
bem distante daquilo que a história do pensamento político – e jurídico também,
por que não? – sempre definiu como poder. Esse novo conceito de poder parece se
assemelhar com um outro cunhado no século XVII na contramão da intensa produção
teórica-política que, naquela época, consolidou definitivamente o significado
jurídico-repressivo do poder que Foucault tanto quis rejeitar e evitar. Estamos
falando do conceito de potência, criado por Spinoza na contracorrente do
movimento contratualista que assolou seu século e fez entrar, definitivamente,
para a História o significado do poder enquanto soberania, lei, repressão.
Na última fase de sua obra,
hoje freqüentemente denominada de "hermenêutica do sujeito", Foucault
parece ainda acrescer ao seu conceito de poder um certo caráter autopoiético,
no sentido de um autogoverno, um cuidado de si que autocapacita e, em última
instância, também emancipa. Esses últimos desdobramentos adquiridos pelo
conceito foucaultiano de poder em suas obras finais – especialmente em algumas
entrevistas e textos esparsos e nos dois últimos volumes da História da sexualidade – parecem torná-lo ainda mais próximo
do conceito de potência de Spinoza. Mas essa análise, bem como uma investigação
acerca das possíveis relações entre esses dois conceitos, não poderá ser feita
aqui e terá de se constituir tema de um outro trabalho futuro, no qual o
conceito de poder foucaultiano seja analisado não mais sob o prisma genealógico
como fizemos aqui, mas sim sob o novo ângulo que marca a segunda e derradeira
fase de sua obra.
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